"em que idade do coração se apaga o riso dos homens?"
Al Berto

Thursday, December 20, 2012

O Paradoxo dos Afectos

Na penumbra olho o teu rosto sereno enquanto dormes. Suave. Nem pareces respirar. Fico a olhar-te durante algum tempo e pergunto-me: "Quem és tu?" Aproximo uma mão do teu rosto. Quase te toco.

Não me lembro nunca de ter tido medo de tocar alguém como agora acontece contigo. Por isso me mantenho afastado. Deixo esta distância confortável entre nós ditar o afecto que nos une após seis anos juntos. Cá estamos nós. Tu, nua, deitada de lado, respirando suavemente virada para mim. Os cabelos  ondulados espalhados em completa revolução sobre a almofada. Eu, de boxers, deitado, também de lado, virado para ti, olhando-te, amando-te no silêncio da madrugada avançada. Depois fecho os olhos e adormeço.

Daqui a pouco o despertador vai tocar. Vais acordar a resmungar, dizendo que tens sono. Esticarás os teus braços, ainda de olhos fechados para me procurares. Depois vais aninhar o teu corpo no meu e ficar assim alguns segundos. Um beijo perder-se-á no ar. A seguir levantar-te-ás sem dizer palavra. Tomas um duche rápido, vestes-te. Vens despedir-te com um último beijo e vais trabalhar. Eu fingirei que ainda durmo. Penso em ti depois de saíres.

Penso na tua juventude. Na forma como ris. Na tua desenvoltura face a situações problemáticas. Penso no teu peito quando te ofereces a mim à noite, recolhidos no conforto do nosso quarto. Penso no teu sorriso, franco, aberto. Penso na tua voz docemente rouca. Penso na forma como te entregas com carinho e empenho em tudo na tua vida, na nossa vida. Penso que a ideia de te perder é insuportável. Penso que te quero hoje mais do que nunca, mas que tempos houve em que te repudiei e abandonei. Em que não te quis, nem a ti nem ao teu afecto, nem ao teu sorriso, nem ao teu corpo, nem ao teu amor.

E tu voltaste, ainda assim voltaste. Sem rancor, com o mesmo amor, com o mesmo sorriso, talvez apenas com um olhar mais triste. Abraçaste-me e nada disseste e eu chorei, chorei por ti, chorei por mim, chorei por nós. Chorei como a criança que sou. E o toque das tuas mãos nos meus cabelos, afagando-os, magoava.

Pouco antes do almoço telefonas-me a perguntar como estou. Contas-me mais um episódio caricato que presenciaste esta manhã. Depois despedes-te com um sonoro ruído. "É um beijo", informas-me entre gargalhadas.

Após desligar ando ainda um pouco pela casa. "Chaves, telemóvel, agenda... Tá tudo." Antes de sair olho para uma foto tua em cima de uma mesa alta de madeira e ferro perto da porta de entrada. Foi tirada há dois anos em Paço de Arcos. Nem sei o que fomos lá fazer nesse dia. Talvez almoçar. Quiseste uma foto no jardim que apanhasse parte do mar. Sorris vagamente para a objectiva. Os braços cruzados, como é teu costume. O meu boné enfiado na cabeça com a pala para trás. O olhar esquecido, perdido em algo que não sei o que é.

Saio, vou trabalhar, com esta ânsia de chegar logo a casa e encontrar a paz que é voltar para ti.

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